Entrevista – Hugo Porto


Incluir ainda é um desafio

A edificação de um sistema educacional inclusivo é um dos passos mais importantes para garantir que as pessoas com deficiência sejam inseridas no mercado de trabalho e nos contextos sociais em um futuro próximo

A edificação de um sistema educacional inclusivo é um dos passos mais importantes para garantir que as pessoas com deficiência sejam inseridas no mercado de trabalho e nos contextos sociais em um futuro próximo. Em conversa com O POVO, o promotor de Justiça Hugo Porto pontua que os avanços legais da última década fizeram a acessibilidade caminhar a passos largos, mas ainda há muito para avançar. Além da estrutura física que permita o transitar de estudantes com diferentes limitações, é necessário ter na escola um ambiente no qual todos os agentes colaborem para um real processo de inclusão. Coordenador do Centro de Apoio da Cidadania do Ministério Público, ele atua como incentivador e fiscalizador das ações de inclusão no Ceará.

Isabel Costa / isabelcosta@opovo.com.br

 

O POVO – Qual foi o maior ganho, do ponto de vista legal, obtido na última década?
Hugo Porto – Com a entrada em vigência da Lei Brasileira da Inclusão, a LBI, no começo deste ano, veio consolidar um sistema legislativo que envolve outras normas nacionais. Desde a década de 1990, temos uma evolução positiva nesse sentido. A LBI, que começou com o nome de Estatuto da Pessoa com Deficiência e mudou, veio a concretizar alguns ditames e algumas passagens, que precisavam ser convergidas e atualizadas de outras legislações existentes.

 

O POVO – Em quais aspectos?
Hugo Porto – A LBI vem observar os ditames da atenção aos direitos da pessoa com deficiência. No passado recente, a conceituação da pessoa com deficiência ficava fragmentada. Algumas legislações elencavam características; algumas inovavam com pessoas e segmentos diferentes por municípios. Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Isso impede que alguma legislação casuística venha a colocar nesse bojo uma pessoa que tem uma ou mais características, mas não tenha dificuldade de conviver. É uma preocupação em voga. Quando começa a se colocar um número muito grande de características, acaba se retirando direitos.

 

O POVO – O senhor poderia contar uma situação prática?
Hugo Porto – Algumas pessoas podem usufruir de vagas de estacionamento. Temos as vagas destinadas para pessoas com deficiência e temos as vagas destinadas aos idosos. Se você começa a caracterizar, em algum momento, a pessoa com má-formação de um dedo, ou de algo não impeditivo, dentro desse grupo, você coloca um número muito significativo de pessoas concorrendo com alguém que utiliza cadeira de rodas. O cadeirante chegaria lá e estaria a vaga ocupada por uma pessoa que não tem um impedimento real.

 

O POVO – Além do sentido de acessibilidade física e locomoção, a LBI trouxe outros avanços.
Hugo Porto – Principalmente quando coloca que o gestor público que não observa as exigências de acessibilidade comete um ato de improbidade administrativa. O gestor público tem que estar ciente que foi expressado, ainda que já tivesse essa compreensão no sistema normativo brasileiro antes da LBI, que essa exigência inobservada incorre em ato de improbidade administrativa. É um dos princípios da administração pública: acessibilidade. E há também a questão da fiscalização de obras e alvarás. Ficou expressada que todas as obras e todos os projetos tenham observados toda a legislação da acessibilidade e as normas técnicas. Isso para reformas em prédios públicos, intervenções em prédios multifamiliares, que são aqueles com muitos apartamentos. Esses locais devem observar isso. Os hotéis têm obrigatoriedade de uma percentagem de quartos acessíveis. Para os veículos também, 10% da frota das locadoras têm que ser acessíveis. E a acessibilidade, de forma geral, nos transportes coletivos. Já vinha essa previsão nos decretos anteriores, mas agora está bem especificado.

 

O POVO – Também para as instituições de educação?
Hugo Porto – Com a LBI, houve uma reformulação. Um dos avanços é o impedimento de cobrar taxas extras para crianças com deficiência e impedir as vedações de matrículas de pessoas com deficiência em escolas. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) diz que a criança tem que ser matriculada no ensino regular. E a LBI veio para reafirmar que não se pode cobrar taxas ou negar a matrícula para um aluno. Isso é crime.

 

O POVO – Mas ainda são comuns relatos de casos de pais e mães com matrículas negadas. Em especial, na rede particular. Nessas situações, falando do cenário local, como proceder?
Hugo Porto – O Ministério Público é uma das instituições de fiscalização para essa finalidade. Podendo ser imediatamente acionado. E comunicar também ao Conselho Estadual de Educação.

 

O POVO – Mas as escolas podem sofrer alguma sanção real?
Hugo Porto – Escolas que violem a norma podem vir a ser descredenciadas do sistema. É importante que o Conselho seja avisado, pois ele também é um órgão de fiscalização.

 

O POVO – E o que deve ser observado dentro da escola?
Hugo Porto – A acessibilidade tem duas vertentes de raiz. Temos a acessibilidade física e arquitetônica. A escola tem que ser acessível seguindo as normas técnicas em todas as unidades físicas. Uma pessoa deve poder acessar tudo. Todos os espaços. Quadra, banheiro, biblioteca. É uma acessibilidade material. E tem que ter a acessibilidade imaterial ou comunicacional. Aquele que precisar de um apoio escolar – seja o apoio escolar para fins de levar ao banheiro um aluno que tem tetraplegia, seja para alimentação, seja para fins de cuidado de higiene. Mas também o professor, o agente pedagógico, tem que se comunicar conforme as características e peculiaridades do aluno com deficiência. Se for surdo, é libras, que é nossa segunda língua. Ou se houver a necessidade de acompanhamento de fonoaudiólogo, de terapeuta ocupacional. E que seja parte de um projeto pedagógico. Quando você inicia uma avaliação de um aluno, o pedagogo e os demais agentes devem fazer um projeto para ele ter o máximo de aproveitamento na escola. Além da acessibilidade comunicacional, que tem a ver com a captação de conhecimento. E há também a acessibilidade digital. As escolas devem prever ferramentas e que seus equipamentos sejam condizentes para o aluno usufruir e tirar o máximo de conhecimento. Se tiver um cego, que ele tenha leitor de tela para o computador e que ele tenha a comunicação física em braile, que ele possa ler, por exemplo.

 

O POVO – E depois da escola, essas pessoas vão seguir para a universidade e para o mercado de trabalho…
Hugo Porto – Sim. E vemos a também a questão dos processos seletivos. Aquele que pleiteia um vestibular, uma posição na universidade, aquele que pleiteia um cargo público por meio de concurso. Qualquer seleção deve ser condizente com as normas da LBI e com as demais leis que normatizam essa questão. Se a pessoa for cega e precisar de um ledor, por exemplo, ele tem que ser qualificado.

 

O POVO – E ainda existem provas e concursos que não obedecem à legislação?
Hugo Porto – S m. A realização dos exames da forma apropriada não é o que ocorre em grande parte das vezes. Tenho uma prova de matemática em que tem uma equação de terceiro grau, um ledor eficiente vai dizer: ‘estamos começando a leitura’. Se for uma pessoa sem qualificação, vai dizer só o que está vendo. Os sinais, os símbolos. Ela não conseguiria transmitir. Como não conhece que ali era uma equação de terceiro grau – e, sim, um amontoado de letras e números – para o aluno é um prejuízo, pois gastaria mais tempo e teria mais dificuldade. Temos que oferecer as condições apropriadas: tempo extra, sala acessível, prova materialmente adaptada.

 

O POVO – Quais perspectivas o senhor enxerga para o futuro?
Hugo Porto – Digo com a certeza absoluta: o futuro é promissor. Temos percebido que a LBI e a acessibilidade estão na agenda. Está próxima das entidades públicas e privadas. A questão maior é das barreiras atitudinais. Grande parte dos gestores diz não no primeiro momento por desconhecer soluções simples que podem ser implementadas para resolver grandes problemas. As universidades, as escolas, as instituições públicas… Cada uma, hoje, está sendo tocada. A LBI entra em todas as casas e instituições. O que eu percebo é que vamos ter uma sociedade mais acessível. Nós estamos evoluindo com passos mais largos, mas ainda que temos muito o que fazer.

 

O POVO – E essa mudança nasce em quais instâncias?
Hugo Porto – Há uma mudança de mentalidade. Creio que a mídia e os meios de comunicação são mais sensíveis. Sempre procurando divulgar positivamente. Uma nova geração está sendo construída nas escolas, a partir do momento em que os alunos têm os direitos. Com o aluno que tem alguma deficiência, ele tem o direito de estar com os demais colegas. Todos os alunos são iguais. E os que não têm deficiências, têm o direito de conviver na diversidade. São dois direitos. Do aluno com deficiência e do aluno sem. Esses alunos que estão tendo essa oportunidade de conviver com a diversidade vão ser os próximos gestores. E vão conhecer na escola que a vida é plural. Ela tem características diferentes. E isso, sim, vai formar uma sociedade mais acessível, mais condizente. A acessibilidade é para todos. Quando tem uma calçada não acessível, não está negando o direito apenas ao cadeirante, mas também para a mãe que empurra um carro com bebê, a uma pessoa com uma mala gigante ou a um idoso. Acessibilidade é direito de todos. Temos que colocar isso na agenda do dia.

 

O POVO – Estamos caminhando para ter uma nova geração a partir da escola?
Hugo Porto – Na escola, estamos formando alunos desde o começo da história pedagógica. Conhecendo com naturalidade, convivendo e sabendo as diversidades da vida. Seja pela característica da vida, raça, estatura, religião. Estamos dizendo que, no futuro, ao ser um empresário, um professor ou um gestor público, essa pessoa aprendeu durante a formação e o desenvolvimento que a diversidade é natural.  Quando ele for selecionar um funcionário no futuro e que exija as características, ele não vai compreender de forma particularizada que uma pessoa com deficiência não concorre. Um cadeirante que esteja sendo selecionado para uma vaga de analista de sistema, pouco importa. A cadeira de rodas não faz nenhuma diferença na atividade. Ele é capaz e ele aprendeu que isso é natural. Incluir e integrar a pessoa com deficiência é algo simples. Temos que afastar esse desconhecimento atitudinal.

 

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