Entre o corpo e o pixel: a tecnologia como ferramenta e território de criação artística

Novas gerações de artistas cearenses movimentam códigos, pixels e algoritmos para pensar ancestralidade, identidade e presença

17:07 | 12 de Nov de 2025
Entre o corpo e o pixel: a tecnologia como ferramenta e território de criação artística

No início dos anos 2000, computadores eram itens incomuns na maioria dos lares em Icó, interior do Ceará. Quando seu pai conseguiu comprar um, Trojany, na época com apenas 10 anos de idade, se tornou uma das poucas pessoas da cidade com acesso a essa tecnologia.

Hoje, Trojany atua como artista visual, arte educadora e designer que desenvolve projetos interativos sobre memória, identidade e afeto usando recursos como IA e modelagem 3D. Mas antes de produzir filmes, sites, performances e exposições, foi fotografando festas de forró que teve suas primeiras experiências profissionais.

“A partir disso, fui aprendendo a fazer edição de imagem e de vídeo, gravar CD e DVD, tocar como DJ. O pessoal me chamava pra tocar e eu saía de casa com uma CPU debaixo de braço, como se fosse um notebook. Foi a partir dessas experiências que fui aprendendo a me relacionar com a computação, a imagem, o som e com o imaginário de como a computação chega nesse país dito subdesenvolvido”, detalha.

Tecnologias ancestrais

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Após anos de vivências e consecutivos avanços tecnológicos, a artista propõe entender o conceito de tecnologia para além dos dispositivos eletrônicos. “Em Icapuí, eles têm uma prática de criação do muzuá, espécie de armadilha pra pegar camarão e outros pescados. É lindo como a comunidade constrói o muzuá e o entende como parte da sua cultura, usando esse artefato tecnológico totalmente não elétrico na alimentação e na economia.”

É a partir dessa concepção de tecnologia expressa em práticas, conhecimentos e manifestações que Trojany entende formas diversas de tecnologia, ampliando possibilidades para além do que seja digital ou elétrico. Para ela, a infinidade de ferramentas à disposição hoje promove uma democratização do fazer artístico ao ampliar o acesso para muitas pessoas. No entanto, lembra que o que confere valor à arte não é a técnica ou o uso de ferramentas sofisticadas, mas sim o propósito e a elaboração conceitual que orientam a criação.

“Tanto faz se você usa uma super tecnologia do Vale do Silício ou uma aprendida com as rendeiras lá em Icapuí. É muito mais sobre o que está em volta, o que é conceitual, a responsabilidade social em volta do trabalho”, define.

Isso é muito Black Mirror

Trojany recorda que, antes da pandemia, quando falava sobre inteligência artificial ou autonomia digital, as pessoas consideravam o tema distante, uma “coisa muito Black Mirror”. Hoje, contudo, essas discussões se tornaram urgentes e cotidianas. Ela percebe que a tecnologia deixou de ser algo futurista e passou a fazer parte da realidade concreta ao mesmo tempo em que segue evoluindo e se transformando.

O que permanece inalterado, por outro lado, é a necessidade constante de reflexão crítica e capacidade de interpretação para lidar com essas tecnologias na cultura e com as questões que elas trazem. Questões estas que Trojany aborda usando materialidades variadas, como performance, taxidermia, instalação, vídeo interativo, entre outras.

“Tudo isso em volta do conceito explícito de relacionar arte e tecnologia à minha vivência nesses processos. Eu sou de Icó, cidade próxima ao Açude Orós, que é muito relacionado à história da minha família. Então eu trago essas histórias sobre os processos de colonização e modernização do Ceará e sobre os recursos hídricos do estado, tudo isso permeado por esse estudo conceitual e metodológico do que é arte e tecnologia”, conta.

Oráculo

Seu próximo trabalho, por exemplo, mistura performance, taxidermia e instalação. ”Oráculo” foi desenvolvido a partir de uma residência artística em Liverpool, na Inglaterra, e em outubro será apresentado no Rio Grande do Sul durante uma exposição.

 

Encruzilhadas digitais

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A pandemia também marcou o início de um novo processo para os artistas, arte-educadores e pesquisadores Pedra Silva, Garu Pirani e Rodrigo Lopes. Foi quando começaram a desenvolver o projeto “Para a Terra Volta Toda Corpa em Matéria”, que investiga os limites e as possibilidades de criar estéticas macumbeiras em mídias digitais dialogando com as religiosidades afro-indígenas no contexto do Ceará.

“Cheguei ao universo da modelagem 3D em 2020, no contexto pandêmico, pela Coletiva Para a Terra, junto a Rodrigo Lopes e Garu Pirani. Desde então, trabalhamos em uma pesquisa de arte, educação e tecnologia que se desdobra em práticas artísticas e arte-educativas, como oficinas, jogos e instalações.”, conta Pedra sobre a obra.

O site possui recursos de realidade virtual que, em seus cinco anos de existência, vem sendo apoiado por prêmios e residências como II Convocatória Laboratórios Criativos Virtuais em Rede (2020), Museu Sem Paredes (2021), 73º Salão de Abril (2022), Salão Sobral de Artes Visuais (2023) e 13º Edital Ceará das Artes (2024/2025).

Na terra e no pixel

Pedra descreve sua prática como um trânsito constante entre linguagens. “Sou artista multimídia. Desenvolvo trabalhos em escultura, técnicas mistas, instalações, vídeos, fotografias, objetos e performance — sendo minha maior mídia o corpo”, explica.

Embora explore em seus trabalhos diversas possibilidades de meio e de forma, ela destaca que algo está presente em todos eles: a intenção de criação como prática “transcestral” e “contracolonial”. “O corpo segue sendo minha principal mídia. Ora plantado na terra, ora projetado no pixel. Busco ocupar lugares marcando minha presença tanto no campo físico quanto no pixelar.”

Arte, código e resistência

No dia 29 de outubro, Pedra participa do “II Seminário de Arte e Tecnologia: Novos Horizontes”, no Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS), como mediadora da mesa “Cartografias Digitais e Narrativas Hackeadas”. Com ela, as artistas e pesquisadoras Bella Comsom (SP) e Lia Krucken (BA) irão discutir sobre tecnologias digitais como ferramentas de escuta, memória, ficção e resistência em territórios invisibilizados.

A mesa irá abordar estratégias para subverter lógicas hegemônicas de representação por meio de práticas artísticas que operam com redes, algoritmos, plataformas e códigos.

No mesmo dia, Trojany também participa de uma mesa do evento. Em “Corpo-Código – Gênero, Sensibilidade e Resistência”, ela media um debate entre a artista e curadora Roberta Carvalho (PA) e as artistas e pesquisadoras Aspásia Mariana (CE) e Bianca Turner (SP) sobre o corpo como interface política e poética nas práticas tecnológicas.

O diretor do MIS-CE, Silas de Paula, comenta a relevância do seminário no debate sobre arte e tecnologia e ressalta o papel do Museu da Imagem e do Som do Ceará. “Mais que espaço expositivo, o MIS é um laboratório de aura contemporânea: não a aura do objeto único, mas da memória e da experiência compartilhada, do encontro coletivo diante da obra que envolve, atravessa e exige o corpo inteiro. Se o algoritmo comprime a arte em métricas, o MIS a expande em memória, em duração e em comunidade”, destaca.

Infraestrutura e desafios

Trojany também elogia a infraestrutura do MIS, destacando que o Museu foi concebido já direcionado a abrigar propostas como instalações interativas e trabalhos em realidade virtual. Ela avalia que, principalmente após a pandemia, os equipamentos de Fortaleza têm assimilado melhor trabalhos assim, mas que ainda há dificuldades práticas que limitam as possibilidades na maioria dos demais espaços culturais:

“É preciso ter internet de qualidade, energia elétrica estável, equipamentos adequados e disposição institucional dos espaços para toparem algumas coisas que podem ser consideradas ‘aventuras’”, enumera, criticando também o fato de que, embora artistas pretas, trans e periféricas estejam sendo convidadas a expor, raramente ocupam posições de decisão como curadorias e cargos de direção de espaços e instituições. A democratização do fazer artístico precisa vir acompanhada da democratização do poder institucional.

Visões incomuns em comum

As criações de Pedra e Trojany convergem numa mesma visão: a de situar a tecnologia como campo de sensibilidade. Suas obras e pesquisas não tratam apenas de apropriar-se de novos meios, mas de ressignificar, na corporeidade e na memória, o uso dos códigos e algoritmos a partir de saberes que confundem a lógica hegemônica dentro e fora do ambiente virtual.

 

Novos horizontes

O II Seminário de Arte e Tecnologia: Novos Horizontes reúne no MIS, nos dias 29 e 30 de outubro, artistas, pesquisadoras e curadoras para discutir as relações entre arte, tecnologia e política a partir de perspectivas sensíveis, críticas e plurais. Com participantes de diversas regiões do Brasil, a programação inclui mesas de debate, mediações locais e vozes que articulam arte, resistência e inovação. O acesso é gratuito, mediante inscrição pela plataforma Sympla.

 

Serviço

II Seminário de Arte e Tecnologia: Novos Horizontes

Inscrições aqui

Trojany

https://www.premiopipa.com/trojany
https://www.instagram.com/_trojany

Pedra Silva
Instagram: https://www.instagram.com/pedrasilva_
Site “Para a terra volta toda corpa em matéria”: https://para-a-terra.com
Contatos: pedrasilvacontato@gmail.com / girandaprodutora@gmail.com

Sobre o projeto

O “Cultura em Movimento: Ceará que cria, celebra e contagia” é um projeto do Grupo de Comunicação O POVO com apoio do Governo do Ceará. A proposta é fortalecer o ecossistema cultural e estimular sentimento de pertença do povo cearense. Nesta edição, o projeto passeará, de forma multifacetada, por produções culturais em quatro linguagens artísticas, a saber: audiovisual, arte popular, artes plásticas e música.