Da margem ao centro: arte independente em Fortaleza
Para além dos museus e equipamentos culturais, um outro circuito de arte cresce em Fortaleza. Coletivos, ateliês compartilhados e galerias independentes convertem espaços da cidade em lugares de convivência, formação e criação em que artistas e público se movimentam em torno de uma arte mais acessível e plural
Quem passa diante do Edifício Palácio Progresso, no Centro de Fortaleza, nem imagina a efervescência cultural que o prédio abriga. Há quase uma década, algumas de suas salas são ocupadas por diversos profissionais criativos, sobretudo artistas visuais, designers e tatuadores.
Dessa proximidade e diálogo constantes, surgiu o Pocinho, coletivo que realiza ações de formação, diálogo e expressão artística. As possibilidades vão de visitas mediadas com grupos de estudantes, cursos, conversas e consultorias a recepções de artistas, curadores, gestores culturais, críticos de arte e galeristas. Além disso, com participações de seus representantes em seminários, palestras e eventos, o movimento se consolida como referência local e nacional.
Outra atividade realizada pelo coletivo é o evento “Ateliês do Pocinho”, que já teve 5 edições. Nele, os artistas abrem seus ateliês ao público, proporcionando uma experiência de seus processos criativos e também compartilhando suas produções recentes e dialogando sobre projetos futuros.
Atualmente, ocupam o edifício artistas como Sérgio Gurgel, Diego de Santos, Gustavo Diógenes, Ramon Alexandre, M. Dias Preto, Ramon Sales, Bia Mourão, Saulo Castor, Eduarda Moiano, Camila Sombra, Igor Gonçalves, Marina Pinto, Márjory Garcia, Virna Lemos e Oliver Benicio. Espaços como este fortalecem um circuito independente fundamental para a arte contemporânea cearense.
Incentivos

Para a artista visual Raisa Christina, o surgimento desses coletivos e galerias é reflexo de um processo de amadurecimento da formação artística local. “Há vinte anos, tínhamos pouquíssimos cursos e escolas de arte na cidade. Hoje, a gente tem a Vila das Artes, o Porto Iracema, o Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), a Pinacoteca, o Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS) e muitos outros espaços que, sem dúvida, juntam pessoas interessadas em pesquisar e produzir artes”.
Um dos efeitos desse estímulo institucional é o surgimento de mais espaços autônomos de artistas que desejam compartilhar seus trabalhos e dialogar de forma independente. “Os editais e as políticas públicas de formação incentivam a produção, as pesquisas individuais e coletivas, a vontade de expor e o aprofundamento da poética de cada artista”, avalia Raisa.
Entre o institucional e o independente

Esse movimento, segundo o curador e Sócio da AICA – International Association of Art Critics, Lucas Dilacerda, é essencial para a vitalidade do circuito de arte em Fortaleza. Para ele, a tensão criativa entre mercado e experimentação é fator fundamental para a potência e a produção de sentido na cena. O curador defende que os museus públicos precisam dialogar constantemente com as galerias e coletivos, pois são campos que se retroalimentam:
“As galerias e os espaços independentes são laboratórios de invenção, onde se experimenta sem a tutela institucional. É dessas margens — dos ateliês coletivos, das ocupações, das casas, dos espaços autogeridos — que nascem as experiências mais radicais e transgressoras da linguagem artística. É nas brechas do sistema que a arte se reinventa”, explica.
Porém, observa que, a partir do momento em que essas experiências ganham força e evidência, os museus e centros culturais tendem a capturá-las, institucionalizando o que há pouco era considerado ruptura: “Isso não é necessariamente um problema, mas evidencia o quanto o sistema se alimenta das margens e do risco”.
Pontes entre arte e mercado

Uma iniciativa que busca criar pontes entre o experimental e o mercado é a Cave Galeria. Fundada por Pedro Diógenes, há seis anos vem representando e apoiando artistas das mais diversas vertentes e origens, majoritariamente cearenses, e estimulando a valorização e o posicionamento de suas produções no mercado de arte.
“Fortaleza sempre teve relevância em termos de instituições. Desde a abertura do Dragão do Mar no final dos anos 90, a gente conseguiu se inserir dentro de um calendário nacional de exposições importantes. Mas, ao mesmo tempo, o mercado de galerias e espaços independentes sempre foi muito restrito. Hoje, Fortaleza conta com algumas galerias de arte que têm intenções claras de desenvolver e apoiar produções locais”, conta Pedro.
O galerista enxerga no mercado nacional um movimento que busca artistas emergentes fora do eixo Rio – São Paulo. Movimento que vê como oportunidade para que Fortaleza, como importante celeiro de artistas que é, tenha essas obras acessadas e consumidas de maneira adequada, algo que “contribui para produções que até então estariam de lado, porque faltava vontade e interesse. Havia uma falta de margem, de percentual de mercado mesmo, para abraçar estas produções”.
Dessa forma, a Cave vem ampliando o alcance da produção cearense em feiras e circuitos como SP-Arte Rotas, Feira de Arte Contemporânea de Pernambuco e o Prêmio Pipa, principal premiação de arte contemporânea do país; e conquistando inserções junto a colecionadores e instituições nacionais e internacionais. No portfólio da galeria, nomes como Navegante Tremembé, Acidum Project, Bárbara Banida, Blecaute, Charles Lessa, Jane Batista, entre outros.
Ecossistema em movimento
Lucas Dilacerda considera importante manter em mente que “para um circuito de arte ser realmente potente, ele precisa funcionar como um ecossistema em sintonia — com todas as suas engrenagens ativas e conectadas: museus, galerias, coletivos, artistas, curadores, educadores, colecionadores, críticos, gestores públicos. Quando uma dessas peças falha ou se isola, o circuito se fragiliza e perde vitalidade”.
Do equilíbrio entre a margem e o centro, o autônomo e o institucional, este ecossistema se sustenta na colaboração, na diversidade e na vontade de permanecer produzindo arte. Pedro Diógenes avalia que, embora a maioria dos espaços ainda convivam com limitações de renda, “a gente vê evolução, diálogos, artistas que até então não teriam espaços em galerias de arte se articulando em conjunto e fazendo com que o público consiga acessá-los. O papel das galerias faz parte desse conjunto. Acredito que ainda há muito a melhorar, mas é um cenário que enxergo com muita motivação”.
Serviço
Ateliês do Pocinho
Rua do Pocinho, 33 – Ed. Palácio Progresso – Centro
https://www.instagram.com/ateliesdopocinho
Raisa Christina
https://www.instagram.com/raisa.christina
Lucas Dilacerda
https://www.instagram.com/lucasdilacerda
Cave Galeria
Endereço: Rua Pereira Valente, 757 – Meireles
https://www.instagram.com/cavegaleria
Sobre o projeto
O “Cultura em Movimento: Ceará que cria, celebra e contagia” é um projeto do Grupo de Comunicação O POVO com apoio do Governo do Ceará. A proposta é fortalecer o ecossistema cultural e estimular sentimento de pertença do povo cearense. Nesta edição, o projeto passeará, de forma multifacetada, por produções culturais em quatro linguagens artísticas, a saber: audiovisual, arte popular, artes plásticas e música.