Arte indígena: flecha lançada para o futuro
Por meio da arte, indígenas de diversas etnias do Ceará têm demonstrado que cultura originária mantém vínculo com tradição, incorpora linguagens e propõe mudanças
Mesmo enfrentando tentativas constantes de apagamento cultural e linguístico ao longo de séculos, a cultura e os costumes indígenas seguem transmitidos de geração em geração. Nas artes visuais, jovens artistas ecoam saberes ancestrais usando novas tecnologias e se conectam com o mundo ao se reconectarem com suas raízes.
Moda com sustentabilidade e protagonismo
Um desses artistas é Rodrigo Tremembé. Natural da Aldeia Córrego João Pereira, do povo Tremembé, no município cearense de Itarema, o estilista faz da moda “uma ferramenta política e de luta para combater os olhares estigmatizados e o colonialismo cultural”.
Para tal, criou a marca Tremembé, que em suas coleções mescla grafismos e materiais já tradicionais do Povo Tremembé a um design contemporâneo, criando peças marcantes com elementos de tradição e inventividade.
Destaque também para a diversidade de seus croquis, que são ilustrados trazendo indígenas com vitiligo, com deficiência, LGBTQIA+ e outras corporeidades; e para o compromisso com a sustentabilidade, reforçado tanto pelo uso de materiais naturais e duráveis para produzir localmente peças em pequena escala quanto pela presença de pessoas indígenas em todos os pontos da cadeia criativa e de produção.
“Somos culturalmente ensinados a respeitar a natureza. Isso está presente em minhas produções. Prezo por materiais e mão de obra locais com o intuito de valorizar e fortalecer nossa bioeconomia”, relata Rodrigo.
Sustentabilidade e diversidade são diferenciais da marca Tremembé | Foto: DivulgaçãoEste protagonismo, conquistado ao poder contar a história de seu próprio povo, fez o artista sentir que algo estava mudando e refletir quando participou da Biennale Révélations, na sede da Unesco em Paris. “A arte indígena deixa de ser objeto de exibição narrado a partir de não-indígenas e passa a ser legítima na voz do próprio indígena”, pondera.
Conexão entre o material e o imaterial
Merremii Karão Jaguaribaras tem seu trabalho inspirado pelos grafismos e pinturas na língua nativa de seu povo | Foto: DivulgaçãoNascida em Aratuba, Merremii Karão Jaguaribaras é artista visual, pesquisadora e escritora do povo Karão Jaguaribaras e também destaca a importância da presença para fazer ecoar as vozes indígenas.
“É fundamental ocupar os espaços com nossas vozes, nossas artes, nossas imagens e nossos corpos. Com o diálogo, a curadoria indígena, as narrativas contadas por nós mesmos. Quando organizamos exposições com nosso olhar, produzimos textos curatoriais com nossa linguagem e apresentamos as obras dentro de nossos contextos culturais, o público começa a entender que a arte indígena não é folclore, mas um pensamento visual profundo, único e sofisticado”, detalha.
Seu trabalho se baseia nas Taowás, que são grafismos e pinturas na língua nativa do povo Karão Jaguaribaras. O termo significa “linguagens fixadas em corpos” e representa o mundo através das formas, dos símbolos dos sonhos e do abstrato para criar uma conexão entre os mundos material e imaterial.
A artista desenvolve suas obras com diferentes suportes, linguagens multimídia e conexões entre o visual, o sonoro e o performático, ampliando assim as possibilidades expressivas para narrar seu território de convivência.
Taowá “Estrela Radiosa”, de Merremii Karão Jaguaribaras. Exposição “Nordeste Expandido”, no Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza | Foto: DivulgaçãoGuardiões da memória
Merremii defende que a arte indígena é tão enraizada na ancestralidade quanto articulada aos desafios contemporâneos, dentre os quais está o de romper barreiras para dialogar com a sociedade não-indígena.
“A arte me permite ouvir e traduzir os cantos da floresta, as vozes antigas, e transformá-las em visualidade contemporânea sem romper com o sagrado. É um processo espiritual e político, onde ser artista é também ser guardiã da memória”, conta Merremii.
Além do trabalho artístico, ela realiza também ações pedagógicas visando a quebra de estereótipos por meio de apresentações, exposições, redes sociais, palestras e oficinas, por exemplo. No livro “Wúpi Taowá – Vestindo-se de Linguagens”, a artista trata dos significados das Taowás e da importância de descrever, codificar e incentivar as interpretações.
De forma complementar, Rodrigo Tremembé também entende que “na cultura Indigena, o ato de pintar grafismos está ligado à vivência do dia a dia. Vida e arte não se distiguem”. Nessa perspectiva, o livro “Entre traços e memórias Tremembé” traz um registro inédito da iconografia do povo Tremembé de Córrego João Pereira, demarcando agora também no espaço da escrita um universo que até então vinha atravessando gerações pelas tecnologias do corpo e da oralidade.
O livro tem autoria de Rodrigo, Iraê Tremembé, Jaiza Tremembé e Sarah de Oliveira, realizado com apoio da KUYA – Centro de Design do Ceará.
Já na exposição “Córrego de Raízes Tremembé”, em cartaz até dezembro na KUYA – Centro de Design do Ceará, é o espaço do museu que se ressignifica como suporte para a ancestralidade e memória coletiva indígenas do Ceará.
Com curadoria de Rodrigo Tremembé, a exposição reúne fotografias, objetos, narrativas e registros da vida comunitária, se colocando como espaço de memória e partilha de saberes e reforçando a centralidade das culturas indígenas para o presente e para o futuro do Ceará.
“A arte indígena torna-se um canal potente de educação e de sensibilização, contribuindo para o enfrentamento ao racismo estrutural, à invisibilidade e à deslegitimação dos saberes originários” afirma Merremii. Mais que um testemunho da sobrevivência cultural, a arte indígena contemporânea transmite a mensagem de que criar é também resistir, afirmar territórios e reimaginar o futuro.
A potência dos Laboratórios de Criação
Tanto Rodrigo quanto Merremii tiveram passagem pelos Laboratórios de Criação de Artes Visuais da Escola Porto Iracema das Artes, em Fortaleza.
Rodrigo desenvolveu o projeto “Rituais de Luz: Memórias Projetadas do Torém”, em que exalta a cultura do povo Tremembé ao combinar técnicas artísticas contemporâneas e tradições culturais. Desenhos criados com arte digital e pintura à mão projetados em tecido e finalizados manualmente resultam em banners de grande escala destacando elementos como caju, jandaia, guaxinim, cobra caninana, entre outros emblemáticos do Torém, dança tradicional dos Tremembés.
Já Merremii apresentou “Taowás – Linguagens Fixadas”, uma investigação a partir das expressões artísticas de seu povo explorando tintas naturais, performances e multimídia para expandir os sentidos da tradição.
Outro trabalho desenvolvido nos Laboratórios de Criação foi “Escudos contra os morticídios”, de kulumym-açu, em que o artista originário do mangue do Rio Siará-Mirim conduz Arraias que utilizam os palitos das palhas e talos como nervuras vegetais para criar seres cobertos por papel-seda multicor. kulumym–açu participa do Rito da Arraia há 20 anos e sempre quis voar. Vê nas arraias brinquedos que transformam o céu em mar.
Serviço:
Instagram da marca Tremembé: @tremembe_
Instagram de Merremii: @cabocla_serpente
Exposição Córrego de Raízes Tremembé
Local: KUYA – Centro de Design do Ceará
Visitação: QUI-SÁB: 12h às 17h | DOM 10h às 15h
Entrada gratuita
Livro “Entre traços e memórias Tremembé”
Livro “Wúpi Taowá – Vestindo-se de Linguagens”
Sobre o projeto
O “Cultura em Movimento: Ceará que cria, celebra e contagia” é um projeto do Grupo de Comunicação O POVO com apoio do Governo do Ceará. A proposta é fortalecer o ecossistema cultural e estimular sentimento de pertença do povo cearense. Nesta edição, o projeto passeará, de forma multifacetada, por produções culturais em quatro linguagens artísticas, a saber: audiovisual, arte popular, artes plásticas e música.