Afrografias do presente: a arte negra cearense

Em Fortaleza, artistas negros transformam suas identidades e vivências em matéria-prima de suas criações. Não apenas celebram a ancestralidade negra, como ressignificam e dão continuidade a essas memórias em um território historicamente marcado pelo apagamento

17:04 | 12 de Nov de 2025
Afrografias do presente: a arte negra cearense

A escritora e pesquisadora Leda Maria Martins propôs, em 1997, o conceito de “afrografias” como um modo de escrever o mundo a partir das experiências negras em que corpo, território e história se entrelaçam como linguagem. No mesmo ano, em Fortaleza, nascia Pedra Silva, futura artista e pesquisadora cuja produção teria forte influência desse conceito.

Corpos que escrevem memórias

Pedra entende o corpo como um lugar guardião de memórias. Assim, conferir centralidade a narrativas, mitologias, imaginários e memórias afro-pindorâmicas se revela uma forma de fazer ruir estruturas coloniais.

“Se o corpo era o único lugar possível para se guardar diante da violência transatlântica, é nele que se ‘aprumam’ vivências, ciências, gestos e tecnologias. Desse modo, não são apenas os documentos coloniais que contam essa história, nem apenas a narrativa única do colono que explica os acontecimentos. O corpo é tecnologia ancestral que se grafa no tempo-espaço por meio da manifestação coletiva”, explica.

Transitando entre performance, intervenção urbana, colagem, desenho digital, instalação, games, artes cênicas e outros suportes, a tônica dos trabalhos produzidos por Pedra reside na criação e sustentação de imaginários decoloniais: a arte como forma de leitura e de escrita desse corpo negro e periférico, vivo e transgressor, na intenção de deslocar as imagens fixas que a sociedade ainda projeta sobre ele.

“Meu trabalho toca diretamente na ferida da colonização. Sou travesti de pele marrom que busca alforria das amarras coloniais para produzir, ainda que de forma efêmera, lugares de liberdade”, afirma.

Uma luta constante

{'nm_midia_inter_thumb1':'https://www.opovo.com.br/_midias/jpg/2025/06/24/263x156/1_ss-35295652.jpg', 'id_midia_tipo':'2', 'id_tetag_galer':'', 'id_midia':'685a99fcc04a9', 'cd_midia':35295652, 'ds_midia_link': 'https://www.opovo.com.br/_midias/jpg/2025/06/24/506x360/1_ss-35295652.jpg', 'ds_midia': 'Celebrando a negritude brasileira, o artista visual Blecaute performa na abertura da exposição <aspas>Baile Funk: un cri de liberté<aspas>, na França', 'ds_midia_credi': 'Alexia Ferreira / Divulgação', 'ds_midia_titlo': 'Celebrando a negritude brasileira, o artista visual Blecaute performa na abertura da exposição <aspas>Baile Funk: un cri de liberté<aspas>, na França', 'cd_tetag': '1', 'cd_midia_w': '506', 'cd_midia_h': '360', 'align': 'Left'}

Liberdade é o tema central do trabalho de Blecaute, artista criado no bairro Passaré, na periferia de Fortaleza, que começou a trabalhar com ilustração digital e depois passou a pintar com acrílica sobre portas e janelas que encontrava na rua.

Hoje, trabalha principalmente com pintura a óleo e desde 2023 faz parte da exposição coletiva “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”, que em 2025 ganhou itinerância na instituição Maison Folie Wazemmes em Lille, na França, e de volta ao Brasil, no Museu de Língua Portuguesa, em São Paulo.

O artista também é estudante de Filosofia, o que lhe trouxe compreensão do potencial da arte enquanto ferramenta política para discutir sobre a sociedade. “Trato sobre uma liberdade que precisa ser conquistada diariamente, pois como afirma Angela Davis, ‘a liberdade é uma luta constante’”.

As obras de Blecaute confrontam a insuficiência de protagonismo negro na História Oficial do Ceará ao representar pessoas negras e periféricas através do retrato, prática historicamente associada às elites.

“Não busco retratá-los através da luta dolorosa por liberdade, pois seria fazê-los sofrer novamente. Ao retratá-los sorrindo, em felicidade e riqueza, afronto a História oficial do Ceará que insiste em nos apagar”, conta Blecaute sobre sua pesquisa “LIVRE PRA CARALHO”.

Nela, propõe um imaginário de pessoas negras em plenitude. Elementos como grillz nos dentes e outras marcas características das favelas de Fortaleza, como cabelos “loiro-pivete” e “sobrancelha riscada”, são adicionados pelo artista a retratos tanto de referenciais de resistência como Preta Tia Simoa e José Luis Napoleão quanto aos de pessoas de seu bairro e convívio, contribuindo na ressignificação do espaço destinado a pessoas negras nas representações artísticas.

Futuros possíveis

 

{'nm_midia_inter_thumb1':'https://www.opovo.com.br/_midias/jpg/2025/10/08/263x156/1_alexia_ferreira_credito_blecaute-37280844.jpg', 'id_midia_tipo':'2', 'id_tetag_galer':'', 'id_midia':'68e6e921916ec', 'cd_midia':37280844, 'ds_midia_link': 'https://www.opovo.com.br/_midias/jpg/2025/10/08/300x450/1_alexia_ferreira_credito_blecaute-37280844.jpg', 'ds_midia': 'Alexia Ferreira une colagens manuais e digitais a ações em arte-educação para construir um futuro mais acolhedor', 'ds_midia_credi': 'Divulgação', 'ds_midia_titlo': 'Alexia Ferreira une colagens manuais e digitais a ações em arte-educação para construir um futuro mais acolhedor', 'cd_tetag': '1', 'cd_midia_w': '300', 'cd_midia_h': '450', 'align': 'Left'}

Alexia Ferreira também encontrou na arte um caminho para ressignificar tanto essas representações quanto suas próprias memórias. Nascida e criada numa comunidade do bairro Barroso 2, foi só na universidade que começou a fazer colagem, expressando o racismo que sentia naquele ambiente.

“Depois, quis trabalhar com pessoas negras sem o viés apenas da dor e comecei a fazer cenários com pessoas negras existindo como se não existisse racismo, uma mistura de pré colonialismo no continente africano e/ou afrofuturista. Hoje, falo em resgatar minha vida a partir da infância e em como crianças negras que foram expostas a problemas sociais podem fazer arte, mesmo na vida adulta. Mas também em garantias para crianças negras serem crianças, de fato”, relata.

Assim surgiu sua pesquisa “Fazendo Arte Como Não Podia Fazer Quando Criança”, projeto de arte-educação que em breve dará origem à sua primeira exposição individual.

“Falar sobre a infância de crianças negras é de muita importância. Realizar ações voltadas para a arte educação e únicamente para crianças negras me deixa muito feliz”, celebra Alexia, que em novembro estará na COP 30, em Belém, abrindo um pavilhão com trabalhos que realizou por seis países, em diferentes continentes: Inglaterra, Colômbia, Índia, Etiópia, Austrália e Estados Unidos.

Entre conquistas e resistências

Pedra Silva observa que artistas negros e periféricos vêm conquistando mais espaço com os avanços nas políticas culturais do Ceará, mais inclusivas em comparação com o cenário nacional.

“A presença de cotas afirmativas nos equipamentos estaduais e municipais, a circulação de produções artísticas contra-coloniais, a articulação de fóruns e conselhos estaduais — tudo isso nos torna referência”, avalia a artista.

Ela está em circulação este ano com as instalações “Santuário”, que abre em novembro no Rio de Janeiro, e “Nutrir a Seiva da Corpa”, que participa também em novembro do 11º Junta Festival, em Teresina-PI. Em dezembro, sua exposição individual “Mandingueira”, após temporada no MAC – Museu de Arte Contemporânea do Ceará, iniciada em janeiro, chega ao Galpão Bela Maré, no Rio de Janeiro.

Ainda assim, Pedra aponta que o racismo e a transfobia estruturais ainda persistem, o que pode ser facilmente observado na ausência de travestis ou pessoas trans racializadas em cargos de gestão e posições de tomada de decisão nos equipamentos culturais do Estado.

Como resposta, este ano ela dá um novo passo em sua trajetória artística, assumindo em parceria com Elisa Carvalho, da Giranda Produtora, a gestão da Plataforma M’kumba – Rede Transdisciplinar de Gestão, Criação, Formação e Pesquisa LTDA. A iniciativa vem do desejo de criar laços seguros entre pessoas racializadas e LGBTQIAPN+ e o campo da arte, com corpos racializados ocupando o lugar de contratantes.

Arte como memória coletiva

Em diferentes linguagens artísticas, Pedra, Blecaute e Alexia convergem no olhar sobre a arte negra como escrita coletiva da memória:

“Ao falar a partir de meu território, reafirmo nossas existência, visto que o Ceará foi conhecido por muito tempo e, infelizmente, até hoje, como uma terra sem negros”.
– Blecaute

“Sinto que nós, artistas negros, representamos pessoas negras de forma coletiva. Dizemos coisas parecidas de forma diferente, pois trabalhamos através de cada alteridade. Mas também acredito muito na minha própria realidade, vir do lugar em que nasci e cresci, falar sobre arte sendo uma mulher negra no Ceará”.
– Alexia Ferreira

“Minhas experiências, ainda que pessoais, não são apenas minhas. Narrar, por meio das linguagens artísticas, uma história apagada pela colonização nada tem a ver com ensimesmamento. Quando artistas racializados produzem de forma autobiográfica, refazem também fragmentos da memória coletiva de sua comunidade”.
– Pedra Silva

Links:

Pedra Silva:
Instagram: @pedrasilva_
Site “Para a terra volta toda corpa em matéria”
Contatos: pedrasilvacontato@gmail.com / girandaprodutora@gmail.com

Blecaute:
Instagram: @6lecaute

Alexia Ferreira:
Instagram: @colagemnegra
Manifesto

Sobre o projeto

“Cultura em Movimento: Ceará que cria, celebra e contagia” é um projeto do Grupo de Comunicação O POVO com apoio do Governo do Ceará. A proposta é fortalecer o ecossistema cultural e estimular sentimento de pertença do povo cearense. Nesta edição, o projeto passeará, de forma multifacetada, por produções culturais em quatro linguagens artísticas, a saber: audiovisual, arte popular, artes plásticas e música.