Amparada por larga experiência em pesquisas sobre educação inclusiva, a professora Selene Penaforte é uma das principais referências na área, no Ceará. Com autonomia no segmento, ela é atualmente membro do Conselho Estadual de Educação. Na década de 1990, quando ainda se tinha uma visão limitada sobre inclusão, Selene iniciou seus trabalhos na área e coordenou a primeira equipe de educação especial da Secretaria da Educação de Fortaleza para atuar com uma nova proposta inclusiva. Em conversa com O POVO, a doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) defende a cultura inclusiva e faz uma avaliação sobre os papéis desenvolvidos pelos gestores escolares e professores, a formação dos docentes para trabalhar com a inclusão de alunos com deficiência, os avanços no segmento e a importância da gestão nas escolas.
O POVO – O que fez a senhora focar em pesquisas na área de educação inclusiva?
Selene Penaforte – Eu trabalho com educação inclusiva desde o início da década de 90. Na época, nem se falava em educação inclusiva. A gente só tinha a visão da educação especial, que era a forma de atendimento, à época, das pessoas com deficiência, principalmente no que diz respeito à escolarização. Esse atendimento era feito separado em escolas especiais ou em classes especiais. Fui da primeira equipe de educação especial. Coordenei essa equipe na rede municipal de Fortaleza, na Secretaria de Educação. A gente começou a discutir essa visão nova que acontecia em outros países e a possibilidade de trazer pra cá. A gente começou com experiências pequenas e, de lá pra cá, minha convicção foi aumentando de que não tinha sentindo esse sistema à parte, e a gente já participou de inúmeros projetos e pesquisas nessa área. Pra mim, é uma convicção de que, para o desenvolvimento das crianças, jovens, que apresentam qualquer tipo de deficiência, a escola regular inclusiva é o melhor caminho.
O POVO – Dessa época, da década de 1990, quais foram os principais avanços no campo de educação inclusiva?
Selene – A Constituição de 1988 previa a obrigatoriedade da oferta do atendimento educacional especializado, algo que as pessoas se confundiam com a escolarização. A Constituição falava que esse atendimento deveria ser feito preferencialmente na escola, mas esse atendimento não se referia à escolarização. Daquela época pra cá, muito se caminhou para trazer clareza sobre esse ‘preferencialmente’, que era esse atendimento complementar, e não a escolarização. Na verdade, a legislação só deixou isso muito claro com a Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva da educação inclusiva, em 2008. Ela deixa claro na norma o que é esse atendimento educacional especializado, que ele não substitui a escolarização do aluno na escola comum. Tivemos inúmeros avanços na legislação, com regulamentações a partir de decretos, de resoluções. Um documento inspirador de tudo isso ocorreu na convenção internacional da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência. Houve muito avanço da prática pedagógica na escola, incremento de pesquisa, formação de professores, produção de material e da própria escola inclusiva. Hoje percebemos o ensino se mobilizando na formação de professores.
O POVO – E dentro dessa evolução, como a senhora destaca os gestores?
Selene – O papel do gestor escolar é fundamental. Professores, bem ou mal, estão passando por essas formações, as coisas estão acontecendo dentro da sala de aula, e eles precisam de apoio educacional. Para que a educação especial deixe de ser apenas do (professor) especialista, e seja da escola como um todo, a figura capaz de trazer essa noção é o diretor. Ele precisa desenvolver três dimensões fundamentais para que a escola inclusiva aconteça. A primeira é a cultura inclusiva. É papel do gestor organizar o seu projeto pedagógico junto com seus professores, desenvolvendo ações voltadas para mudanças culturais, para a mudança de atitude, para a crença da inclusão. Em outras palavras, a escola deve ser inclusiva, não porque a lei manda, mas porque as pessoas passam a acreditar naquilo e, assim, fica bem mais fácil para desenvolver a segunda dimensão, que são as políticas de inclusão dentro da escola. O gestor também é o responsável por organizar essas políticas que vão desde a formação dos professores à acessibilidade física e pedagógica. A terceira dimensão é o desenvolvimento de práticas pedagógicas inclusivas. O aluno precisa de aparato, de uma estratégia pedagógica diferenciada.
O POVO – A senhora fala da importância do gestor. Ele deve focar em estudos na área de educação inclusiva?
Selene – A gente entende que, realmente, assim como existe a formação específica para professor, que deve se pautar no fortalecimento das práticas pedagógicas, para o gestor, existem também conhecimentos necessários. Ele deve conhecer bem a legislação, a forma de abordagem com a própria família, a busca de parceria com a comunidade para atendimentos complementares. A criação de um projeto de ação que contemple o fortalecimento da educação inclusiva. Saber o que o professor necessita diante das dificuldades. São várias ações que vão partir da iniciativa do gestor e, para isso, ele precisa ler, conhecer, para que a escola seja inclusiva como um todo.
O POVO – E qual o papel do professor regular? Como é feita a formação dele ou como deveria ser feita?
Selene – Primeiro de tudo, é dentro de uma cultura, de ele acreditar que, de fato, o lugar daquele aluno é na sala de aula dele; que pode desenvolver ações daquilo que é de sua competência, ações pedagógicas que possibilitem o aluno a aprender. O grande papel da escola é trabalhar o saber sistematizado, o conhecimento científico. O aluno com deficiência tem direito ao currículo, ao saber universal, porque a escola existe para cumprir essa função. Claro, além da formação humana, ela tem a função de socializar esse saber construído pela humanidade através da ciência. O professor tem que ter a crença de que é um bom professor para crianças sem deficiência e que também pode ser para crianças com deficiências. Se o professor é da rede pública, ele tem que ser favorecido pela Secretaria (da Educação), pelo sistema. Se é da escola particular, as gestões devem buscar essa formação para os professores. O próprio apoio entre colegas é importante, o compartilhamento de experiências exitosas. Os professores têm que ter envolvimento de busca, e com apoio da gestão, e também ter um movimento individual que faz parte da formação do professor.
O POVO – A formação desses professores passa por algo específico, algo que já venha das universidades?
Selene – Hoje, as universidades, as licenciaturas, os cursos de Pedagogia, a formação de professores de uma forma geral já têm no seu currículo a obrigatoriedade de oferta de disciplinas relativas a esses conhecimentos. Antes não existia. Quando me formei, não existia. Às vezes, tinha como optativa, e olhe lá quando era oferecida, mas numa abordagem muito clínica. Hoje, as disciplinas de educação especial avançaram, os alunos de formação para professores já saem com uma visão inicial. O MEC exige uma política institucionalizada nas universidades, não só na matrícula e no atendimento do aluno com deficiência, mas na formação de professores. Na UFC (Universidade Federal do Ceará) existe uma Secretaria de Acessibilidade que dá todo o aparato de que o aluno precisa.
O POVO – Como o gestor e o professor podem contribuir no âmbito familiar?
Selene – A questão da família é fundamental. A família deve ser parceira, é importantíssimo. Para que o professor educacional especializado faça seu trabalho, quando vai fazer avaliação diagnóstica e pedagógica desse aluno, não seria completo se não buscasse as informações com a família. Tenho que saber a história de vida dessa criança até chegar à escola, o que sabe fazer de melhor. A gente olhar para o princípio da educação inclusiva é deixar de lado o olhar da limitação e olhar para o potencial. Quem melhor vai falar desse potencial é a própria família. Preciso saber o que ele sabe fazer, o que ele gosta, é um recurso que vai ajudar a montar o meu plano a partir das competências desse aluno. É preciso o apoio da gestão, promovendo reuniões na escola, atendendo os pais individualmente e em grupo e apoiando-os. A escola tem que ser um espaço onde a família tenha confiança em deixar filho. Costumo dizer assim: quanto menos a escola tem deficiência, menos também o aluno vai ter deficiência. A escola tem o poder de determinar a condição de deficiência.
O POVO – A educação inclusiva está equilibrada nas escolas e universidades?
Selene – Estatisticamente houve avanço. O MEC mostra a evolução da oferta. Houve grande inversão do gráfico ascendente. Antes esse atendimento era 90% em escolas especiais. Agora é o contrário. Antes, as crianças nem estudavam, algumas poucas iam para a escola especial. Com a emenda constitucional de número 59, que amplia a obrigatoriedade da educação no Brasil, de quatro para 17 anos, hoje, qualquer criança ou jovem nessa faixa etária tem que estar na escola. Isso também ampliou a política de inclusão e a lei evoluiu no sentido de obrigatoriedade da educação básica. A educação básica no Brasil é obrigatória.
O POVO – O aluno com deficiência está conseguindo chegar à faculdade?
Selene – Você vê esse reflexo na universidade. Cresceu consideravelmente o número de aluno com deficiência nas universidades. Hoje, o MEC não aprova nenhuma universidade que não tenha estrutura acessível e todo aparato para receber esses alunos. E, consequentemente, os alunos que estão nas universidades estão chegando ao mercado de trabalho.
O POVO – Em seus estudos, a senhora fala sobre a cultura do individualismo do professor, que ele não compartilha do saber e de recurso com os outros. Qual é a importância de o professor interagir com os outros professores?
Selene – Isso é fundamental. Quando se fala da pedagogia de atenção às diferenças, tem por trás o princípio da educação compartilhada. A educação inclusiva só tem sentido dentro da proposta de educação cooperativa, não só dentro da sala de aula, mas na prática entre professores. A boa escola vai priorizar no seu planejamento que os professores troquem saberes, materiais, conversem entre si. Acabar com a cultura do individualismo. “Ah, o meu aluno.” Não, ele é aluno da escola. Tem que acabar com essa pedagogia que incentiva a competição dentro da sala de aula e partir para práticas que incentivem trocas entre alunos, assim como é saudável entre professores.
O POVO – Como as mudanças necessárias na escola inclusiva podem ser feitas da forma mais adequada?
Selene – A grande utopia seria a gente acabar com esse adjetivo inclusiva. É uma escola para todos. Se ainda preciso usar inclusão, escola inclusiva, é porque existe exclusão. Significa que muitos ainda estão fora. Não só crianças com deficiência. Quando se fala em educação inclusiva, não se refere só à educação das pessoas com deficiência. Refere-se ainda ao atendimento de vários segmentos que têm dificuldades de se beneficiar da escola. Ainda existem muitas crianças fora da escola por sua condição de pobreza, que sofrem abuso, violência. Para a escola ser inclusiva, ela precisa de um novo projeto. Se tiver como está nas práticas tradicionais, vai só receber o aluno, mas não vai incluir. Para incluir, ela tem que pensar coletivamente com seus colegiados e seus professores sobre o projeto de mudança. Para ser inclusiva, ela precisa melhorar e toda melhora exige mudança. Não melhora do nada. Preciso propor a formação, a porta para passar o aluno cadeirante, a relação com a família, o atendimento por especificidade do aluno. São várias situações que a escola vai ter que se transformar para propor melhorias que atendam satisfatoriamente o público-alvo da educação especial ou os segmentos excluídos.
O POVO – Que tipo de cuidado a escola deve tomar para que, em vez de inclusão, não gere mais preconceitos contra o aluno com deficiência?
Selene – Primeiro, a dimensão que falei: a cultura. Trazer isso como uma coisa natural. Receber uma mãe que chega com seu filho para matricular de uma forma natural. O desenvolvimento da cultura é fundamental para acabar com o preconceito. Quanto menor a criança chegar à escola, melhor. Ser recebida como aluno, e não como aluno deficiente. Os direitos são para todos. Não podemos dizer que vamos atender todo mundo igual. A gente é igual, o aluno é igual no direito, mas ele é diferente nas suas necessidades. Pelo contrário, a escola tem que ver todos os alunos como diferentes. Ninguém é igual, tanto aluno com e sem deficiência, eles são diferentes em algum momento. Temos que atendê-los nas suas necessidades.O preconceito está no adulto. As crianças, ao lidarem com seus coleguinhas com deficiência, são solidárias. A grande questão da escola é saber olhar para a diferença como valor, e não como problema.
O POVO – Quando se fala em educação inclusiva, qual seria o maior erro?
Selene – A dificuldade ou a necessidade para avançar. É tirar a cultura do olhar para a limitação. É a gente deixar de olhar para a limitação, a dificuldade, e mudar esse olhar para o potencial da criança, que aquele aluno pode se desenvolver e contribuir como cidadão socialmente.
O POVO – Qual a avaliação inclusiva do Ceará, sobretudo no ensino público?
Selene – Em Fortaleza, já temos um trabalho consolidado, uma equipe de referência na Secretaria da Educação, que existe desde 1994. Eu que inaugurei a primeira equipe. De lá pra cá, avançou muito. Claro que ainda tem muito o que vencer. Mas hoje já temos a figura do profissional de apoio, algo previsto pela legislação. Isso era muito difícil para o sistema. Os municípios de Maracanaú, Fortaleza, Quixadá e outros, que vou ser injusta de não citar os nomes, são premiados nacionalmente pelas suas experiências. São municípios que estão levando a sério. Percebe-se que os gestores estão incumbidos, não só de cumprir a legislação, mas de fazer um trabalho de atendimento mesmo.
O POVO – E quais são os principais desafios da escola?
Selene – No ano de 2016, a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão ajudou bastante. Essa lei traz grandes avanços bem explícitos aos direitos. A lei impulsiona, e o desafio é manter essas políticas de mudanças de alguns paradigmas políticos no Brasil. A gente não tem como negar sobre as políticas do governo Lula, governo Dilma, da garantia desses direitos. Hoje, o Brasil é considerado um dos mais avançados na legislação de inclusão. O desafio é manter e olhar para frente sem nenhum retrocesso.