Liderando a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para os Idosos e as Pessoas com Deficiência do Estado, Rebecca Cortez projeta um futuro no qual não será mais necessário falar em inclusão. As pessoas, ela diz, vão entender que o outro é apenas um indivíduo com particularidades. Enquanto esse tempo não chega, ela ajuda a colocar em prática as políticas públicas propostas nas legislações. As ações são amparadas pelo Gabinete da Primeira-Dama, Onélia Leite Santana. A coordenadoria – que surgiu a partir do Projeto Ceará Inclusivo – desenvolve ações articuladoras entre várias áreas. Da educação à geração de empregos. Na entrevista a seguir, Rebecca fala sobre os avanços da legislação, as conquistas do poder público no Estado e sobre a necessidade de quebrar barreiras atitudinais.
O POVO – Muitos especialistas têm apontado que, no Brasil, temos uma legislação ampla. A senhora concorda com isso? Nossa legislação é abrangente?
Rebecca Cortez – Se fosse só para seguir a legislação que já existia, não teria tido essa necessidade de criação de uma nova legislação, que foi a LBI. Mas a legislação antes era um pouco fragmentada. Por exemplo, com a Constituição de 88 mesmo, nós teríamos assegurados todos os direitos fundamentais de todos os cidadãos. Mas não está explícito que a educação tem que incluir aquelas pessoas que têm algum tipo de necessidade educacional especial. E a partir daí, foram se desenvolvendo as legislações. Foi criada a Lei de Bases e Diretrizes da Educação, que já inclui a educação inclusiva. Falando da educação, veio a Convenção da ONU, que tem um valor de emenda constitucional. E por último, a LBI. De legislação, nós estamos bem amparados. A LBI trouxe uma nova perspectiva em relação, principalmente, a educação. Ela trouxe a questão do professor apoiador, que deve existir para acompanhar esse aluno nas necessidades educacionais especiais que ele tem. A questão de não cobrar taxa extra. É uma questão importantíssima para as crianças que estudam nas escolas particulares. Anteriormente, sabemos que era cobrada essa taxa. Hoje, sabemos que a cobrança de taxa é indevida, e a escola pode ser descredenciada. Além disso, veio a questão de frisar que a criança deve ser incluída e oferecidas ferramentas para a criança ou o adolescente ser incluído. E existirem ferramentas para que ela continue na escola e se desenvolva. E aprendendo, crescendo e desenvolvendo todas as suas habilidades. A LBI trouxe essa inovação, e a legislação anterior não se referia ao uso indevido dessa cobrança.
O POVO – O que era mais difícil antes da LBI?
Rebecca – A questão da aceitação. Algumas escolas não aceitavam a inclusão dessas pessoas com deficiência. Criavam milhões de mecanismos de barrar a entrada do aluno. E hoje em dia, isso é contra a lei. Ainda acontece? A gente sabe que acontece. Mas, se existe a ferramenta legal e os órgãos de fiscalização, seja o Ministério Público, seja o Conselho de Educação, é seguro que existe essa lei. Se o usuário for negado à escola, ele tem como entrar com um processo, pedindo a admissão dele e a punição da escola que negou.
O POVO – Mas hoje as pessoas com deficiência têm os direitos garantidos na prática? E de que forma a Coordenadoria tem acompanhado essa questão?
Rebecca – Em relação à educação inclusiva, posso dizer como um consenso que existe entre quem participa é que na esfera pública essa política tem sido efetivada mais que na esfera privada. Nas escolas públicas temos recebido mais alunos, temos conseguido manter esses alunos e criado mecanismos para que eles sejam desenvolvidos. Atualmente, temos aproximadamente 3.200 alunos inscritos na rede estadual. O Município, por conta da educação infantil, soma mais de 34 mil alunos. Então, é um número significativo mostrando que o poder público tem dado uma atenção especial à educação inclusiva. E, inclusive, as escolas públicas têm a obrigação de ter o AEE, que é o Atendimento Educacional Especializado. Esse atendimento funciona de maneira complementar ou suplementar ao ensino regular. É feito para atender só essas pessoas que têm necessidades educacionais especiais. Conta com Salas de Recursos Multifuncionais, as SRMs. Os professores que participam do AEE, além de desenvolverem o aluno, são capacitados para atuarem na área. Eles foram uma ponte dos alunos com os professores do ensino regular. Há uma troca de conversa para ensinar como o aluno se desenvolve melhor.
O POVO – Há uma barreira de atitude no sistema de ensino?
Rebecca – A gente não pode falar só pelo sistema público de ensino. Temos que falar pelo público e pelo privado, pois são os dois que existem. A questão da barreira atitudinal é encontrar pessoas que são resistentes à questão do ensino, de inserir, de aceitar e de trabalhar o aluno. Numa experiência pessoal: na sala do meu filho, havia uma criança autista. E eu escutei outras mães dizendo que ele atrapalhava o funcionamento da sala. Em vez de pensar na perspectiva de ensinar o filho que as pessoas são diferentes por si sós, que todo mundo possui características diferentes, as pessoas têm aquela resistência de não aceitar. Acho que a gente está preparado para aumentar essa rede. Seja na questão do reconhecimento, de saber que essas pessoas têm que estar incluídas, seja no que já foi feito. Em 2016 foram contratados 50 professores apoiadores, que estão distribuídos em 32 municípios, para trabalhar com essas crianças. Existe um centro especializado de educação, o Creaece. Lá, tem curso de formação para professores para trabalhar com alunos com surdez. Existem alguns equipamentos no Estado que são voltados para que a gente consiga essa inclusão. Mas, infelizmente, no meu ponto de vista, a questão da barreira atitudinal ainda existe.
O POVO – O que a senhora identifica como avanço na questão da inclusão? E o que ainda falta fazer?
Rebecca – Não daria para citar todos os avanços que aconteceram. Hoje, a inobservação de assegurar todos esses direitos, e o da educação obviamente, é tratado como improbidade. Não é aquela coisa de mudar a gestão e esquecer a política, pois não é política prioritária do governo. O gestor, não observando essa questão da educação, que precisa ser inclusiva e incluir a todos, é tratado como improbidade. Isso foi um avanço. Pois a maioria das coisas funciona só quando é cobrada. E em relação à educação, no Ceará, já estávamos à frente. Não foi preciso esperar vir uma lei que obrigue. Mas, por exemplo, os AEEs já existem há mais de cinco anos e atendem um número significativo de pessoas. Tem convênio com as ONGs. Já foram feitas inúmeras coisas voltadas à participação plena dessas pessoas com deficiência em qualquer uma das escolas. O que falta, torno a dizer, é a questão de superar a barreira atitudinal. Entender que essa pessoa tem os mesmos direitos. Ela deve ser recebida, absorvida, desenvolvidas suas habilidades da mesma forma que uma pessoa sem deficiência. Não é só não ter a vaga. Muitas vezes tem a vaga, mas não tem a disponibilidade daquela escola receber um aluno com deficiência da mais simples – por exemplo, a deficiência física porque a escola não tem um banheiro. Já existem as adaptações razoáveis. É um ônus mínimo para um ganho imenso. Se todo mundo lutasse pensando em incluir, já teríamos avançado bem mais. Não são só recursos financeiros para serem destinados. É a questão de entender e fazer a diferença.
O POVO – O Ceará é um estado inclusivo?
Rebecca – Ainda falta muito. Falta do mais simples, que a gente pode perceber no cotidiano, que é a acessibilidade de mobiliário urbano e física. Nas calçadas de Fortaleza dificilmente há três quarteirões seguidos que a pessoa com deficiência possa transitar sem encontrar obstáculos, físicos ou visuais. Do mínimo ao mais importante, que é a questão da educação, que considero importante. Ainda falta conseguir 100% das pessoas matriculadas. Mas o número que temos hoje em dia é significativo e é maior do que outros estados que têm economia mais fortalecida que o Ceará. O olhar da gestão do governo, na gestão passada e nesta, é bem sensível a esse segmento. O olhar de efetivar esses direitos para quem os teve negados por muito tempo.
O POVO – Alguns especialistas falam que há dificuldade em medir a inclusão. Existe uma ferramenta, de maneira geral, que possa apontar se as pessoas com deficiência têm conseguido se sentir incluídas?
Rebecca – Temos alguns números. Por exemplo, das pessoas com deficiência incluídas no mercado de trabalho. Em relação à educação, temos o número de alunos incluídos na rede estadual de ensino em 2015. Além disso, podemos mensurar as escolas que recebem esses alunos. No ensino regular, o AEE é um equipamento que é no contraturno. Ele complementa. A questão dos Núcleos de Apoio Pedagógico Especializado, os Napes, que é de extrema importância. Nesses núcleos existe uma equipe multiprofissional de assistente social, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional. Nós temos oito escolas no Ceará que possuem esses núcleos. É uma equipe multiprofissional pensada para trabalhar a perspectiva pedagógica, para facilitar, para desenvolver as habilidades. A gente consegue mensurar esse tipo de ação. Onde estão os recursos, quais são as entidades, quais são as escolas.
O POVO – O que a senhora espera da inclusão nos próximos anos?
Rebecca – Espero que a gente supere a questão da inclusão. Da pessoa com deficiência, historicamente, passamos por uma época de negação. De pessoas com deficiência quando nasciam eram enterradas vivas. Depois, passamos por fase de segregação. E, de um tempo para cá, a inclusão. Eu gostaria que a gente não precisasse falar mais de inclusão, que a gente entendesse que todo mundo é igual. Quando o aluno chegasse para procurar uma escola, ele fosse recebido como todo. E seriam trabalhadas suas habilidades quando são trabalhadas dos outros. Uma criança que tem dificuldade de enxergar não é colocada na frente? Então, todo mundo tem suas características diferentes. E o ideal é que todo mundo fosse tratado igual. Que a gente não precisasse falar assim “vamos incluir”. Que funcionasse de forma que todo mundo fosse incluir. Isso é o que eu desejo, que todos fossem tratados iguais. Mas em relação à educação, espero que a gente continue avançando. Não só por uma questão de alfabetizar ou trazer essas pessoas para o ensino regular, mas também pensando na perspectiva futura.
O POVO – A senhora se refere a quê?
Rebecca – Hoje, no Brasil, temos um percentual mínimo de pessoas com deficiência com ensino superior. Se a gente conseguir trazer essas pessoas para participar do ensino regular, desenvolvendo suas habilidades no contraturno, vamos com certeza estar formando profissionais mais qualificados na frente, que consigam fazer ensino superior e ter trabalho. Infelizmente, ainda temos diferenciação. No Brasil, os empregos para pessoas com deficiência exigem uma menor qualificação. Pois o percentual de pessoas com ensino superior é bem pequeno. Pensando também em uma perspectiva futura, de essas pessoas participarem do mercado de trabalho e competirem de igual para igual, o meu desejo é que a gente consiga incluir. É muito difícil falar para uma mãe que já tentou colocar seu filho várias vezes nas escolas, aceitar ainda colocar o filho no ensino regular. Ela já vem cansada daquela luta. Volto a dizer, a barreira atitudinal é a principal. Se é identificado na escola que a criança não está conseguindo se inserir, se todo mundo tivesse superado a barreira do preconceito, nós conseguiríamos deixar a criança na escola incluída com os colegas e professores.
O POVO – E o que a sociedade pode fazer para conseguir superar essa barreira? Que não está só na escola, mas em outros espaços também.
Rebecca – Nós, da sociedade civil, todos, podemos fazer muito. A primeira coisa é entender que o outro é um espelho. Somos todos iguais perante a lei. Tratar o outro de igual para igual, mas entendendo que algumas pessoas possuem necessidades específicas. E respeitar o outro como semelhante, porém como pessoa que possui características diferentes das suas e pode necessitar de um tratamento diferenciado. A gente sabe as vagas preferenciais. Elas não são respeitadas ainda. O mínimo a gente não conseguiu fazer enquanto sociedade. Você, como cidadão com deficiência, tem que entender qual o contexto em que está inserido. Tem que conhecer os marcos legais para poder cobrar. Se empoderar, entender qual o contexto e cobrar os direitos. E nós, cidadãos sem deficiência, entender que o outro é um semelhante, mas todos possuímos características e necessidades diferentes.
O POVO – Qual avaliação a senhora faz do papel da Coordenadoria nesse contexto?
Rebeca – O Estado tem um papel fundamental. Foi assegurado por lei que existam os AEEs, que trazem um enorme ganho para as pessoas com deficiência. Eles complementam a atividade do ensino regular, no intuito de desenvolver todas as habilidades da pessoa. E hoje temos diversas escolas que possuem AEEs. E convênios também com organizações não governamentais. Hoje em dia não tenho receio de dizer que o Estado – quando eu falo, é Estado e Município – consegue cumprir com a obrigatoriedade e efetivação da lei muito mais que as escolas privadas. Pelo percentual de equipamentos que possui, pela capacitação dos professores. Nas escolas particulares, não há capacitação do professor como intérprete de libras. Mas a libras é a nossa segunda língua. O surdo é alfabetizado em libras. O Estado possui, o Município possui. Na questão da educação, a rede pública está avançando a passos largos. Ainda faltam algumas coisas com toda certeza. Sempre vai faltar. Mas avançamos a passos largos quando implantamos o AEE, quando temos as Salas de Recursos Multifuncionais, quando capacitamos professores para trabalhar educação inclusiva, quando temos um equipamento que é formador de professores. A gente já avançou muito.
O POVO – E o que ainda falta?
Rebecca – Ainda falta a questão de vaga. Principalmente, nos municípios do Interior. A gente sabe que na Capital as coisas funcionam melhor. Pela população e quantidade de equipamentos. Mas ainda falta levar para o Interior o conhecimento também. Quem está nos municípios, às vezes, nem sabe quem procurar. Nos municípios existem as Credes. E as pessoas que precisarem que alunos sejam inseridos na educação inclusiva devem procurar as Credes. Mas muita gente no Interior não sabe dessa informação. Falta ampliar essa rede, esse público. E estar sempre insistindo na capacitação das pessoas. Para que a gente forme não só professores, mas pessoas que consigam disseminar a acessibilidade.
Serviço
Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para os Idosos e as Pessoas com Deficiência do Estado
Coordenadora Especial: Rebecca Cortez Dauer
Onde: av. Santos Dumont nº 1589 – Aldeota – Praça Luíza Távora. Fortaleza/CE
Telefone: (85) 3101 1645
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